quinta-feira, 4 de junho de 2015

Cartas para mim: (A Câmara Secreta)

A música recomeçou. Estou a correr e a pia a inundar; as portas da câmara estão se abrindo e os demônios estão saindo. Basiliscos dementes, que plantam sementes. Nos seus olhos amarelos há algo como a morte. Ainda não estou forte o suficiente (ou será que, ao contrário, minhas energias estão sendo sugadas?). Numa hora estou num carro voador, noutra no armário embaixo da escada, noutra ainda, sou um lutador, um gato ou aranha feroz - talvez algum gigante pequeno elfo querendo machucar. Mas não. Isso não é mera fantasia. Isso é real. Eu sou real. Trate de avisar aos descendentes que eu estou voltando (se é que algum dia existi). Cheio de pesadelos, cheio de passados, mas carregado de presentes também. Se me vires no trem ou na floresta, pode não ser eu. Estou por aí, mas nem me sinto; petrifiquei. Por aí... mas não existo. Eu não sei. A fortaleza não foi o suficiente, pois o mal sempre vem.
E os teus medos ocultos?
Ah, eles se revelarão, se desvelarão -
    como a vela, queimarão.
Se ainda não viste os olhos, nem olhes: nem pela poça, nem pelo espelho, ou por qualquer meio. Não olhe. Apenas enfrente. - Em frente! Com garras e dentes! Não gemas. Não te escondas no banheiro, nem sejas o derradeiro e nem o Último, nem o fim. Sempre o primeiro de mim. Não desistas. Aponte para a ponte. Atravesse. Passe. Morra. Um fim pode ser apenas mais um começo se souberes abrir, se souberes atravessar. Romper com a alma é difícil, mas possível. Romper pra recuperar. Abrir as portas pra mim.
- Câmara secreta, câmara dos segredos, o que trazes pra mim? És como Aladim? Num passe de mágica? Voando num tapete? Ou sendo invisível ao mundo, sendo visível a poucos, (in)visível aos poucos...?
Ouça ou gritos no banheiro! Ou o choro da fênix... O céu nublado estando estrelado, a noite azul num corpo nu. Fede. A cadáver. Mede. Teu caráter. Usa a espada! e corta! e fere! e geme! e despedaça! e rompe! e mata. Salva teus amigos. Com um silvo. Rasga tua pele. - Como a memória, és grande escória! Vergonha pra humanidade. Como um Rumpelstiltskin. Vergonha alheia. Mas quem se importa? É sexta-feira! Dia de paixão, dia de ilusão, dia de diversão. Fala tua língua que ninguém entente. Pede favores que ninguém atende. Atiça. Atiça contra teus inimigos. Entra em acordo. Com suas cobras, com seus jogos, com suas mentiras... elas são apenas para ti mesmo, e para nada mais, e para ninguém mais...

Sobrando apenas a música do começo...
Que repete mil vezes pro teu tormento...
E, neste momento
se sonhas, não ganhas
se não vens, não tens
se recusas, perdes...
- Escutai!
"Pedi e dar-se-vos-á
Buscai e achareis
Batei e abri-se-vos-á"
Mas se usa vendas
Há quem te venda
E se prestas atenção e assistes
Lê e entenda.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Haveria de ser?

Tudo quanto fazia era ilusão. O que imaginava era ilusão, o que desenhava era ilusão, aquilo que desdenhava era ilusão. Cada gesto, cada palavra implicava na sua realidade construída, irreal, ideal. Complicava. Não tinha cura su'alma. Costurada das mais diversas formas pela falta do que fazer. Fazia sentido? Fazia, mas não sentia. Seus gestou eram alinhados com a sua tendência à perfeição simétrica. Seus olhos, um brilho (in)comum de loucura e obsessão. As folhas que escrevia é que pareciam escrever. Não escrevia, biografava. Toda uma vida num pedaço de papel, mas esquecia de ser. Seus passos, desalinhados por conta de um semelhante desalinho das ideias, teciam um caminho no qual ninguém conseguia decifrar. Para chegar até ali, parecia ser preciso muita coisa, mas nem desconfiavam que não. Apesar da rudez, até assustadora, para uma expansão dos sentimentos, bastava um pouco de simpatia e confiança. Certa vez, lhe disse que pela falta do que fazer, acabaria rindo com a solidão. Não foi, porventura, isso mesmo que se sucedeu? Certamente! - Riu-se. Riu e não viu mais o tempo. O tempo perdido pela crença de estar só. Riu porque viu que estava melhor. E não poderia ser diferente! Já não via as antigas maneiras de caminhar; começava já a avistar - ainda que bem pouco - o verdadeiro curso do rio, que ia de encontro ao caminho que deveria seguir. Apesar de seus olhos mal saberem o que buscar, buscava e sentia; sentia o que sabia que agora haveria de ser. Uma leve intuição, como a pluma que via sendo levada pelo rio. Leve, sem destino; rumo ao horizonte - um traço branco de encontro ao crepúsculo alaranjado. Já não era mais miragem no deserto, mas sim, circunspectamente uma parte da própria realidade.